Violência para nós, brasileiros,
é um valor — e se confunde com nossa percepção do que é “ser homem”. Somos
violentos porque desde cedo o garoto é ensinado a não voltar pra casa
“chorando”, para não apanhar “duas vezes”. Nossa violência se confunde com
nossa percepção do que é “ser homem”. Sim, porque as mulheres brasileiras não
são mais violentas — fisicamente, embora do ponto de vista “verbal”, tenho lá
minhas desconfianças — do que qualquer outra mulher no mundo, mas os homens,
sim, em relação aos outros.
por Wedencley Alves* no Carta
Capital
Hoje, mais cedo, um querido amigo
me chamou a atenção para uma matéria da Folha, onde Manuel Castells afirma que
não é a internet que nos faz violentos. Mas o próprio país, que tem um
histórico longo de violências. Ele tem razão, mas não precisava, comentei, um
estrangeiro nos dizer isso.
Violência para nós é um valor:
desde as, aparentemente, ingênuas malhações de judas (e quem malhávamos, quer
dizer, espancávamos “simbolicamente”? Os vizinhos, aqueles de quem não
gostávamos, os maridos “traídos”, as mulheres que, supostamente, “não
inspiravam respeito”, o gay, o devedor, o comerciante antipático etc.).
Somos violentos porque desde cedo
o garoto é ensinado a não voltar pra casa “chorando”, para não apanhar “duas
vezes”. Nossa violência se confunde com nossa percepção do que é “ser homem”.
Sim, porque as mulheres brasileiras não são mais violentas — fisicamente,
embora do ponto de vista “verbal”, tenho lá minhas desconfianças — do que
qualquer outra mulher no mundo, mas os homens, sim, em relação aos outros.
Temos violência de classe (pobres
se matam muito, e as elites e classes médias “mandam” matar: o que são os
assassinatos policiais, senão o efeito da carta branca que damos a “eles” para
matar em nosso nome, em defesa do nosso patrimônio?). Temos violência de raça
(socialmente falando), temos violência de gênero.
Somos violentos nas discussões
políticas, futebolísticas. Não confiamos na justiça, confiamos na vingança e,
particularmente, mesmo a justiça, quando ganha os holofotes, quer reafirmar a
violência como valor; ou, quando longe dos holofotes, recorre a arbitrariedades
impensáveis contra os mais frágeis (ou inimigos políticos “a mando”).
Somos os campeões de tortura, de
linchamentos letais, morais, midiáticos. Das mortes nos campos, nas cidades,
nos lares.
Morador de Nova Iguaçu, vi boa
parte dos meus amigos de infância morrer na mão de terceiros: de bandidos? Não.
Até de amigos ou colegas. Acerto de conta, briga de bar, ciúme de garotas.
Somos a cultura daquele que fala
mais alto, aquele que bate na mesa, aquele que chama pra porrada, aquele que
“não aguenta desaforo”, aquele que mete o dedo na cara, e aquele que pergunta
“sabe com quem você está falando?”.
Somos violentos nos programas de
humor infantis, nas piadas sem graça, no campo de futebol, na sala de aula, pra
reafirmar nossa macheza incipiente. É lógico que nossos bandidos serão
violentos. Eles serão parte da sociedade em que vivem. Não quero nem falar do
trânsito estúpido, com recorde mundial de mortes. Carros são armas perigosas
nas nossas mãos.
Nossa violência é verbal,
institucional, física, psicológica.
O Brasil não é o campeão de
homicídio. Mas está muito perto de ser. Não importa os dois ou três países mais
violentos que nós. Importa que precisávamos repensar isso: subtrair a violência
como um valor social. É preciso que nossa violência se torne motivo de
vergonha, não de orgulho; vexaminosa, não auto-afirmativa.
É preciso desconstruir, de uma vez
por todas, esta cultura da violência. Não para sermos o ideal com que um dia
mentiram pra nós. Mas ao menos para que não nos matemos diariamente.
—
* Wedencley Alves é professor do
Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal
de Juiz de Fora. É doutor em Linguística (Unicamp) e mestre em Comunicação
(UFF). Pesquisador na área de comunicação e discurso, hoje dedica especial
atenção a questões envolvendo “mídia e violência” e “mídia e saúde”
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