Em média, uma em cada três
mulheres no mundo sofrerá violência por parte de algum parceiro (ficante,
namorado, marido) em algum momento de sua vida. Esta é a principal conclusão de
um estudo realizado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em 44 países, em
que quase meio milhão de mulheres foram entrevistadas entre janeiro de 2000 e
abril de 2013.
Já no Brasil, uma pesquisa
realizada em novembro de 2014 com 2.046 mulheres com idades entre 16 a 24 anos
encontrou quase o dobro da taxa de violência do estudo da OMS. Aqui, três em
cada cinco mulheres disseram já ter sofrido violência — física, sexual ou
psicológica — por parte de algum parceiro.
Em comum, os casos registrados
nos dois estudos têm o fato de que — tanto no Brasil quanto em Bangladesh,
Japão, Etiópia e nos outros 40 países examinados — os agressores são,
invariavelmente, homens. No entanto, parte dos esforços de governos e de organizações
independentes para prevenir este tipo de violência ainda falha em tratar da
formação de meninos e homens e em questionar modelos de masculinidade baseados
em violência e dominação.
O I Seminário Internacional
Cultura da Violência contra as Mulheres, realizado em São Paulo nos dias 21 e
22 de maio, reuniu especialistas de vários países e colocou em debate, entre
outros temas, a necessidade de se desconstruir e problematizar a violência de
homens contra mulheres a partir desta masculinidade hegemônica.
O conceito, elaborado pela
socióloga australiana Raewyn Connell em meados da década de 1980, se refere a
um modelo de masculinidade que, apesar de não ser praticado por todos os
homens, é transmitido a eles como ideal masculino. Este modelo, incentivado
social e culturalmente, implica na afirmação de homens como tais também através
da opressão e da violência contra mulheres.
Maria Luiza Heilborn, professora
do Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro) e pesquisadora do CLAM (Centro Latino-Americano em Sexualidade e
Direitos Humanos), uma das especialistas presentes no seminário, acredita que,
no Brasil, a masculinidade hegemônica está profundamente ligada ao controle da
vida sexual das mulheres. Para ela, esta maneira de ser homem também se funda
na figura do “predador sexual” e conecta certa “honra masculina” à conduta
sexual das mulheres com quem este homem se relaciona.
“Este modelo aparece de maneira
muito forte na violência contra as mulheres, porque quando uma mulher desiste
daquele homem, a honra dele está manchada. São os casos mais clássicos de
pancadaria na família ou eventualmente assassinato [da mulher]”, comenta
Heilborn. “Há um desenvolvimento da estrutura psíquica masculina — do ponto de
vista cultural, não de indivíduos em particular — que está pouco preparada para
receber a rejeição feminina. É ele que pode rejeitar.”
Heilborn ressalta também como
esta masculinidade hegemônica subordina outras maneiras de ser homem que não
estejam baseadas nestes valores. “Não precisamos falar só de homossexualidade.
Um homem tímido, por exemplo, será sacaneado por outros homens.”
Biologia x Cultura
O foco em masculinidades, no
plural, e na ideia de que existem diversas maneiras de ser homem, é crucial
para desconstruir comportamentos tidos como “naturais” ou inerentes a certa
configuração biológica dos machos da espécie humana. É este o tema trabalhado
por Matthew Gutmann, professor de antropologia na Brown University (Estados
Unidos).
Ele comenta como a noção de que o
comportamento violento e dominador de alguns machos humanos seja uma constante
em machos de todo o reino animal, muito presente no senso comum, não se
sustenta. Há cada vez mais registros de espécies de animais em que o
comportamento de fêmeas e machos diverge — e não pouco — das ideias hegemônicas
sobre como deveriam se comportar fêmeas e machos da espécie humana. “Por alguma
razão estes exemplos não se tornaram tão conhecidos, e eu acho que é porque
estas espécies de animais em que os machos estão no controle, em que eles lutam
entre si, levam as pessoas a pensar ‘olha só, é a mesma coisa entre humanos’. E
isso ajuda a naturalizar quem somos e por que fazemos o que fazemos.”
Para Guttman, transformar um
traço social em algo biológico é “perigoso”, pois não só legitima tais
comportamentos como também sufoca os esforços para transformá-los. “Temos que
entender que somos animais e temos corpos biológicos, mas não somos controlados
por eles. E temos que entender que as raízes da violência entre homens têm mais
a ver com relações de poder e com homens tentando controlar mulheres em várias
sociedades. E que isso é verdade tanto no nível íntimo, dentro de casa, com o
marido tentando submeter a esposa fisicamente, como também na sociedade como um
todo.”
Fonte: Opera Mundi
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